MEMÓRIAS PARA MINHA FILHA (PARTE 2)
JK assumia a
presidência e surfava numa onde de otimismo e prosperidade do povo brasileiro.
O Brasil crescia, “cinquenta anos em cinco’, construía-se Brasília, a Indústria
crescia, principalmente a alimentícia com a Perdigão nas margens do Rio do
Peixe na década de 30 e posteriormente a Sadia criada na vizinha Concórdia em
1944 absorvendo a grande demanda de carne de frango e suína além da
comercialização de grãos utilizados para ração animal.
Seus bisavós
prosperavam, como todo pequeno proprietário do Sul do país prosperava mediante
jornadas de muito trabalho na lavoura. E como o projeto era fazer o país
crescer sobre rodas, não tardo e seu Ernesto comprou uma rural de segunda mão,
mas muito bem conservada. Ter um carro naqueles cafundós era algo importante,
no que pese o maior uso que se deu a Rural foi fazer o “Nino”, apelido de seu
avô, leva-los mais vezes à missa dominical na igreja matriz de Abdón Batista,
há uns 17 km do povoado de Santa Catarina onde moravam.
Mas não era só
economicamente que a região prosperava. Havia otimismo no ar. E mesmo nos mais
afastados rincões do interior do Brasil, a onda libertária e
irreverente dos anos sessenta, que varria as civilizações centrais, fazia
borbulhar o coração dos jovens do interior de SC.
O espírito da
geração Rock in Roll contaminava até instâncias onde o “vanerão’ e a “rancheira’,
ritmos tipicamente sulistas, dominavam nos salões de baile e o sertanejo raiz
de Tonico e Tinoco e Tião Carreiro e Pardinho eram os hit do momento.
Não sei bem ao
certo, mas pelos registros fotográficos da juventude de seu avô Antônio, as
tendências que dominavam no planalto central catarinense estavam bem mais
alinhadas com os centros urbanos do sudeste do que com as pradarias do
extremo sul do país.
No lugar das
bombachas e dos chapéus campeiro e botas cano alto, traje de festa de todo gurí
que estava beirando a idade de namorar, típico do estado vizinho mais ao
sul, seu avô e amigos posavam nas festas com ternos justos, de tom único
e escuros, sapatos pretos bico fino, meias de seda, gravatas finas e colarinho
e lapelas compridas. O toque final viria
com o gel e brilhantina, indispensável para manter o topete. Não havia
cinema nem televisão, mas se via réplicas de jovens Presley e James Dean (
aliás seu avô tem uma foto que é a cara dele ).
Nunca pesquisei
a fundo essa “anomalia” em terras de domínio gaúcho. Talvez se tratasse de uma
rebeldia dos catarinenses, resquícios da
guerra dos farrapos, onde os “barriga verdes” como eram chamados, tomaram
uma “cossa” dos gaúchos em algumas batalhas decisivas. O fato é que a cultura
gaúcha, tão agressiva e dominante, atingiu menos aquela região do que a tendência
mundial que vinha com a onda de rebeldia e ventos libertários desta década.
Para as mulheres
os ventos da liberdade não sopraram com tanta força. Sua avó Maria foi vista
algumas vezes com uma "mini" saia com dois dedos acima do joelho. Mas
somente nas festas particulares em que eram dadas na casa de seu bisavô Antônio
Besen, sob a supervisão da sua bisavó Virgínia.
Seu avô era um
rapaz muito bonito. Não se sabe se foi namorador. Nunca comentou nenhum
caso amoroso antes de se casar com sua avó. Já sua tímida e recatada avó Maria
Erandina ( Dina, como era chamada ) , por um bom período gerou crises de ciúmes em
seu avô por um namorico que teve com o Dejalma, um cultivador de mel de
abelha ( que seu avô afirmava ser o pior de SC:“ mel aguado!” ) e também
fotografo oficial da famílias da região.
Dizem que seu
avô Antonio teve uma infância muito mimada. Nasceu em 43, num momento de
prosperidade de seus bisavós. O pós guerra foi bom para o sul do Brasil. Os
produtos agrícolas e principalmente a criação de animais rendiam boas economias
para as famílias de pequenos produtores do Sul. Prosperavam com muito trabalho
e com o florescimento da indústria alimentícia da região
Apesar da dura
rotina de trabalho de quase 12 horas diárias na lida, as coisas tinham
melhorado para os “Klein”. O nascimento do primogênito trouxe algo que não se
conhecia ou não se manifestava nos seus bisavós: ternura. Desde então, seus
bisavós se mostraram as pessoas mais amáveis do mundo com crianças. Todas as
crianças com quem conviveram, sejam afilhados, netos, vizinhos sempre foram
muito bem tratados e tem uma lembrança muito amável do Seu Ernesto e da Dona
Lucia.
Logo após o
nascimento do primogênito, seu bisavô teve caxumba mal curada e
acabou "descendo" e inflamando os testículos, esterilizando-o.
Não era algo tão incomum nessa época sem médico nem hospitais. Talvez tenha
sido o fato de se verem reduzidos a um filho único, num mundo cheio de famílias
onde a média era 10 filhos. Talvez porque conseguiram descobrir uma ternura que
nunca tiveram ou receberam na vida na relação com o filho. O fato é que seus
bisavós não demonstravam a dureza que a vida lhes impusera, quando se tratava
de afagar uma criança.
Desta forma,
consta que seu avô cresceu com todos os mimos e caprichos que uma criança
poderia receber. Talvez exagerado. Contam que era uma criança muito
"bardosa". Choramingava o tempo todo e suas chantagens eram
prontamente atendidas com presentinhos e concessões de caprichos. Pelos
relatos dos seus bisavós e do que sua avó Maria ouviu falar dos antigos, seu
avô Antônio foi uma criança muito bem tratada. Mimada, na verdade. Tinha sempre
boas roupas e sapatos, ia a missa com os cabelos lambidos, na primeira fila, e
era ele que levava ao altar as gordas doações que seu bisavô fazia na hora da
oferta da missa, aos olhos de todos, claro. Há registro fotográficos de sua
infância, já por si só algo raro para a época, onde seu avô é visto em boas
roupas, com chupetas sofisticadas ( que usou até os 5 anos de idade ),
cavalinhos de pau com madeira trabalhada e até um pônei ou um cavalo nanico,
não se sabe ao certo, mas ainda criança se exibia em cima de arreios infantis
que não era para qualquer um.
Seu avô tem
versão diferente de sua infância. Reclama que sua mãe lhe comprava um sapato
novo 2 números acima do seu e o fazia usar até ficar 2 números menor, a ponto
do pé ficar torto dentro do sapato tão pequeno. Lembra que quando ia ao culto
aos domingos, tinha que vir descalço até perto da igreja e colocar o sapato
atrás da sacristia e ficar com o sapato apertado, lacrimejando de dor até
acabar o culto. Diz ele que até hoje tem trauma e quando vai numa missa parece
que sente os pés apertados lhe queimando os dedos como na sua infância. Por
isso vai pouco à missa.
Suas melhores
lembranças são de uma vida solta e livre pelos potreiros e vassourais caçando,
montando mondeis e pescando nas sangas e riachos da propriedade. Sempre
descalço.
Conta que a
paixão pela caça e pela pesca veio desde cedo, e o acompanhou pela vida toda.
Só deixou de fazê-lo quando o AVC o impossibilitou, já com mais de 60 anos.
Mesmo depois de ter mudado para Ibicaré, constatou que aquela propriedade era
ideal pra seus passatempos. O cimo da serra era recapado de uma mata nativa,
com muitos pássaros, principalmente o Jacú, uma galinha do mato, além de cotia
e tatu. No outro extremo da propriedade estava o Rio do Peixe, que como o nome
já diz, oferecia várias modalidades de pesca, desde Lambaris, Bagres e Jundiás
nas corredeiras, Cascudos nos remansos e Carpas nos poços de água parada.
Bastava uma chuva que impedisse o trabalho na roça, que lá estava ele com suas
linhas de pesca descendo o potreiro rumo "à pedra" lugar preferido
para pegar peixes ligeiros de corredeiras como o lambari e o jundiá.
Quando era
menorzinho, em Abdon Batista, todos os dias montava armadilhas e pegava muitos
pássaros. O que cantavam ou tinhas penas coloridas como Canários, Azulão, Pintassilgos,
Coleirinha, Sanhaços, Cardeais, Curiós, e Papagaios, eram preservados e
trancafiados em gaiolas ou em um viveiro que seu bisavô, outro aficionado por
pássaros, construíra atrás do galinheiro. Já os gorduchos e feinhos com os
Pombos, Bem-te-vis, Sabiás, Nambus, Saracuras e até Sirienas tinham como destino
a panela de sua bisavó.
O “amor” aos
pássaros é um capítulo à parte na história dos Klein das primeiras gerações. A
casa de seu bisavô era decorada com dezenas de gaiolas com as mais variadas
espécies de pássaros cantadores. Ele mesmo aprendera a construir essas
masmorras onde, para seu deleite, sentenciavam ao cárcere perpétuo lindas avezinhas.
Dizia que era amor. Demonstrava amor pelos seus cativos, que com o tempo,
acabavam se afeiçoando a ele também, vindo lhe comer na mão. Havia aos montes
na natureza e seus cantos eram ouvidos a qualquer hora do dia em qualquer
lugar. Não havia muito motivo para o aprisionamento. Mas ninguém o demoveu
desta ideia até os últimos dias de sua vida, quando doou todas suas aves para
um amigo, que ele confiava, pois dizia que este amigo era de confiança e amava
seus pássaros e não iria soltar pra morrer de fome na natureza. A
explicação mais plausível e menos cruel que encontrei para justificar esse
amor, que era real, foi justamente o fato de que para seu bisavô, assim com
para inúmeras pessoas simples que tiveram um passado difícil e passaram necessidades,
ter o que comer e ter onde morar era algo essencial, de forma que quase tudo o
resto era visto com supérfluo, quase que desnecessário, inclusive a liberdade e
outros valores que tanto preservamos hoje.
Mas a vida dos
klein´s desta época sempre foi marcada por muito trabalho e muita disciplina. A
vida no campo, ao contrario do que possa parecer, só prospera quando se tem
disciplina e certa sistematicidade. Pelo menos é assim com os colonos do
sul do país. No campo a vida corre num círculo eteno. Diariamente.
Semanalmente. Anualmente. O tempo é circular. Repete-se diariamente.
Repete-se anualmente sempre do mesmo jeito a cada estação do ano. E nesta luta
eterna contra a natureza, ora dominando-a, ora sofrendo com ela, na verdade,
nesta contradição, neste movimento eterno de interação dialética faz com que o
homem do campo, na busca por humanizar
os espaços naturais, acabe se tornando um ser mais “natural” do que os povos da
cidade. Seus antepassados “kleins” tiveram muito dos “jeca tatu”, dos
‘mazaropes”, dos matutos todos representados como o homem do campo brasileiro.
Acordar cedo era
uma regra sagrada. Muito cedo. Cinco da manhã, todos os dias. Pra tirar o
leite, tratar as criações e preparar-se para a primeira jornada na roça. Seu
avô, ainda há alguns anos debatia com seu bisavô ( sempre aos berros ) que era
uma idiotice fazê-lo levantar-se às 5 hs da manhã, com temperaturas abaixo de
zero, pra picar capim para as vacas, que só comeriam bem mais tarde, pois
estavam ainda na estrebaria. Mas as coisas "eram assim, porque eram
assim" simplesmente respondiam os seus bisavós. E seu avô ia todo dia,
choramingando de nojo, rachando os garrões no frio da geada, mas ia, desde
pequeno.
Sua bisavó
tirava o leite ainda escuro e seu bisavô tratava os porcos.
Logo em seguida
pegavam os apetrechos, a marmita e iam pra roça, "pegar a fresca". Lá
pelas 8 hs paravam para o café da manhã, que era um pão com “chimia” e nata ou
queijo. Lá pelas 11hs voltavam pra casa. Sua bisavó finalizava o almoço, que geralmente
faltava só fritar uma carne na frigideira com banha de porco enquanto seu
bisavô cuidava dos porcos e das galinhas. Seu avô aproveitava para vistoriar as
armadilhas próximas da casa.
Seu bisavô tinha
o hábito de beber um cálice de Bitter Águia. “Abria o apetite e engrossava o
sangue”. Quando não tinha Biotonico Fontoura ou Sadol em casa, fortificantes
indispensáveis para as crianças de minha geração, ele nos dava uma colher de
Bitter, dizendo que fazia bem do mesmo jeito.
Após o almoço,
quando era época de fruta, se sentavam na “área” da casa e descascavam uma
baciada de laranja, goiaba ou iam buscar uma melancia que ficava "
gelando" mergulhada dentro da sanga há alguns metros da casa. Todos
deitavam e dormiam até as 16hs, quando se voltava pra roça até escurecer.
Á noite, o
ritual de recolher e tratar as vacas, dar ração para os porcos, recolher as
galinhas e pegar os ovos era sagrado, inclusive aos finais de semana. Todos os
dias. Durante todo o ano.
Em Abdon Batista
não havia eletricidade ainda. Não no interior, na roça. Seu avô passou a
infância sem saber o que era uma lâmpada. O rádio era a pilha. O “repórter
Esso” era o programa sagrado, com as reportagens do Brasil e do mundo. Sua
bisavó não gostava, mas sua avó acompanhava as radionovelas da época. Aos sábados
á tarde, dia do banho mais demorado, seu bisavô, num ritual sistemático ligava Terminado
o trabalho, passavam no tanque de roupa, próximo a casa que
tinha água da bica sempre escorrendo e se lavavam para o jantar. Em
dias de muito frio, lavavam-se em gamelas com água morna na
porta de casa. Após um jantar silencioso, rezava-se o terço. Todos os
dias. Sem ter opção do que fazer, dominam muito cedo. Seus bisavós mantiveram
esse habito até a morte. Acordar muito cedo, almoçar ao meio dia em ponto.
Dormir com as galinhas.
Seus avós
casaram-se muito jovens. Fizeram uma festa com muitos convidados. Carnearam um
novilho e fizeram uma bela festa, tudo registrado em preto e branco pelo
fotografo Dejalma. A lua de mel foi em Aparecida do Norte.
Logo após o casamento ocorreu o incidente do moinho e a mudança do seu bisavô
para Ibicaré.
Seus avós foram juntos. Sua avó, que era muito apegada a sua família não ficou
muito feliz, mas aceitou como todas as moças faziam na época. Com umas dezenas
de Araucárias que foram compradas do seu bisavô Antonio, a um preço camarada,
seu Avô e alguns carpinteiros construíram uma grande casa de madeira, com
paredes dupla. Um luxo para a época. Foi lá que eu, suas tias Marli e Cleusa
nascemos e passamos parte da infância.
A casa era grande. Construída em um terreno desnivelado, tinha duas entradas na
parte de cima. Uma dava para a sala de estar, que tinha um sofá grande e anos
depois foi adquirida uma televisão, colorado RQ, preto e branca, que tinha como
garoto propaganda nada menos que o Pelé. Havia uma varanda que circundava
essa parte da casa, chamávamos de “área” e eu detestava porque tinha que
escovar com palha de aço, encerar e lustrar com o escovão todos os sábados. Na
outra extremidade da área tinha a porta da cozinha. A cozinha ara a parte mais
importante e animada da casa. Tinha uma mesa grande e cadeiras de palha, onde
se faziam as refeições, as lições da escola e jogava-se canastra com os
vizinhos. Havia 3 grandes janelas, uma em cada parede. Um fogão a lenha
esmaltado ocupada o lado oposto da mesa. O fogo era aceso bem cedo e permanecia
sendo alimentado até que o movimento da cozinha serenasse, quando se acabava de
lavar a louça e seus avós iram tirar a sesta até a fresca da tarde, antes do retorno à lida. Sempre havia uma
chaleira com agua quente para o chimarrão. Nos dias frios dos invernos catarinenses,
o fogão era um dos utensílios mais apreciados da casa, pois além de aquecer
todo o ambiente, costumava-se assar milho, batatas doce e muito pinhão na chapa.
Um guarda louça de madeira, um paneleiro uma pia pequena e um fogão a gás
compunham toda a mobília da cozinha, e como era grande, havia muito espaço
livre, onde as crianças adoravam brincar, correr e passavam a maior parte dos
dias frios e chuvosos.
Do lado sul da
casa ficavam os quartos. Eram quatro. Os dos seus avós era o maior. O meu e do
de suas tias ficavam no meio e o último ficava vazio e arrumado e intocado para
visitas. Em baixo tinha um porão enorme e ficava o chuveiro. A agua quente do
chuveiro devia ser despejada em um recipiente próprio que ficava em cima, na
despensa, ao lado da cozinha. Esquentava-se a agua no fogão, despejava-se no
recipiente e dava a volta por fora da casa até o chuveiro no porão. Bem
trabalhoso.
O sanitário,
“patente” como chamávamos, era afastado da casa. Era uma casa de madeira em
cima de uma fossa. Era muito bem feita e muito limpa. Tinha um tampa de forma
que não deixava escapar odores desagradáveis. Todo dia eu tinha que recolher as
cinzas do fogão e despejar na fossa, uma medida eficaz de higienização.
A casa de seus
bisavós ficava há uns cem metros mais acima e era uma casa de modelo mais
antigo. Destacava-se para nós crianças por apresentar algumas peculiaridades
que a transformava-se em misteriosa, interessante e ao mesmo tempo assustadora.
A casa tinha um
cheiro doce. Nunca soubemos o porque, mas provavelmente era porque no porão
havia três grandes “Pipas” onde se armazenava o vinho produzido anualmente.
Vinho doce e perfumado de uvas gaúchas. Todo dia eu deveria ir até lá e retirar
uma jarra daquele suco alcoólico para seu bisavô e seu avô. Creio que este
mesmo cheiro adocicado foi se impregnando na casa no decorrer das décadas.
Na casa de seus
bisavôs havia um sótão, com uma grande antessala e dois pequenos quartos em
estilo chalés. Num dos quartos estava a primeira cama de seus bisavós com o colchão
de palha de milho e os travesseiros de flor de marcela. Havia baús, balanças
antigas, capas de chuva de cavaleiros, chapéus, e muita poeira. Como as janelas
estavam sempre fechadas, era escuro e tenebroso. Seus bisavôs não gostavam que
fôssemos brincar no sótão. Proibiam e raramente deixavam a gente subir. Pra
garantir que não desobedecêssemos sempre contavam histórias de “monstros do
sótão”. Sempre havia a oportunidade de subir quando estavam dormindo após o
almoço, mas a escada de madeira fazia muito barulho e sempre nos denunciava na
tentativa de explorar aquele lugar tão fascinante aos nossos olhos.
Morávamos há três quilômetros da cidade. Éramos vizinhos dos Spoltti. Do lado
de Joaçaba moravam o Angelo Spoltti e a comadre Sueli. Do lado de Ibicaré
moravam o Miro Spoltti e a comadre Elida. Em seguida eram as propriedades da
Nonna, a matriarca dos Spoltti, que já era bem velhinha. Seguindo morava o
Gildo Schu, uma família de alemães com muitos filhos, que estudavam na mesma
escola que eu. Depois vinham as terras do Salvatore. Não lembro o nome dele.
Lembro que pouco antes da cidade morava o Pedro Dotta, que era casado com uma
costureira muito boa e sua avó era amiga dela.
A relação com os vizinhos sempre foi amigável. Mas havia uma espécie de
competição no ar. Quem tinha os melhores porcos, as melhores colheitas, as
melhores galinhas. Mas acho que era algo saudável.
Em Ibicaré o forte não era a agricultura, com era em Abdão, mas sim a pecuária,
principalmente a venda do leite e a criação de porcos. Foi o momento de grande
crescimento dos grandes laticínios e frigoríferos que prosperaram em Santa
Catarina, como a Sadia e a Perdigão. Enquanto seus bisavós se dedicaram mais ao
leite e a lavoura, seu avô construiu um enorme chiqueiro para criação de
porcos, que passaram a fazer parte de nossas vidas.
O suíno é um animal marcante. Dizem que é muito inteligente, que pode ser
domesticado em casa e pode se equiparar aos cães em comportamento. Mas vivendo
em cativeiro, em baias com 20 indivíduos, não é a esta lembrança romântica que
fica.
A primeira coisa
que impregna na vida de um criador de porco é o cheiro de estrume. No caso
do suíno o nome correto é “merda” mesmo. Os chiqueiros precisam ser limpos
todos os dias. Boa parte do tempo de trabalho com a criação de porcos, nos método
antigo daquela época, era a remoção diária de montanhas de estrume que fedem
como o humano. Dizem que o olfato é, dentre todos os sentidos aquele que nos
remete mais à nossa condição animal. Com nossa evolução ele foi sendo reprimido
pelo paladar, visão e tato, mas tem uma ligação importantíssima com nossa
memória. Ainda hoje, nas estradas, ao passar um caminhão com porcos o odor me
remete imediatamente para minha infância e todas as lembranças florescem
imediatamente.
Outra coisa que
impressionante são os gritos dos porcos. Parecem-se muito com gritos humanos. E
numa criação de grandes proporções como seu avô tinha, os gritos dos porcos
eram uma constante em no nosso dia a dia. Gritam quando tem fome, quando tem
sede, quando brigam. Você ouve gritos de porcos o tempo todo.
Onde há porcos e
merda de porco há moscas. Muitas moscas. O chiqueirão eram sempre construídos
próximos às casas, seja por falta de planejamento, seja por questão de
praticidade e segurança, o fato é que era como se fossem quase como uma parte
da casa. De lá vinham verdadeiros enxames de moscas. Como as pragas do
Egito. Em algumas épocas, chegavam a escurecer o teto da cozinha da cada de seu
avô. As crianças filhos de criadores de porcos como eu, sabem fazer todos os
tipos de brincadeiras com moscas, desde amarrar várias para fazerem levantar
objetos, até arrancar as assas e transformá-las em bichos terrestres.
Mas foi com a suinocultura que seu avô prosperou. Todos se lembram da vez que
com uma única venda de uma leva de porcos para a Sadia, ele conseguiu comprar a vista uma picape da
Ford, com o cambio na barra de direção, novinha em folha, que fomos eu e ele
buscar na concessionária de Joaçaba.
Havia um ritual entre os vizinhos mais próximos. Quando um matava um porco para
o consumo próprio, se entregava parte da carne para o vizinho. Como não havia
geladeira, era um método eficiente para sempre se ter uma carne mais fresca em
casa. Eu tinha a incumbência de sair entregando uma paleta pra comadre Sueli,
um lombinho pra comadre Elida, uma costelinha pra Nonna.
Dia de matar porco era um dia especial. Tinha que coincidir com um dia de chuva
ou de pouco trabalho na roça. Geralmente aos sábados. Acordava-se cedo e já se
acendia o fogo com um tacho de ferro enorme, de uns 200 litros,
com água que ficava fervendo. No dia anterior sue avô escolhia um
porco gordo e não muito velho e separava. Quando
a água estava quente ele trazia o porco pelas orelhas e deitava
de pernas pro ar. Eu tinha que segurar as pernas de traz do porco. Sua avó
segurava as pernas da frente e seu avô segurava a cabeça junto ao chão. Com a
faca prateada, um punhal que seu avô só usava pra carnear animais,
ele localizava exatamente onde o coração estava batendo e
enfiava rapidamente a faca. O porco gritava e esperneava muito, mas por pouco
tempo. Morria rápido. Com um pedacinho de pano trancava-se o buraco para não
sair o sangue. Com canecos pegava-se a água fervente do tacho e
jogava-se no porco já morto. Com uma faca grande ia-se raspando todos os pelos
e a pele que saiam com facilidade devido a agua fervente. Raspava-se todo o
porco. Feito isso, sempre em cima de um tablado, depois de tudo limpo,
colocava-se o porco de barriga pra cima e seu avô começava a abrir o
porco. Inicia-se pelo pescoço e serra-se o osso do peito. Com um caneco,
retira-se todo o sangue que derramou na caixa torácica. Será usado para fazer
chouriço. Uma vez aberto o peito, retira-se o coração, rim, fígado, que já iam
para um espeto para serem assados ainda de manhã no braseiro ao lado, e os
demais órgãos, como pulmão, estomago, vesículas que eram reservados para fazer
sabão. Corta-se a barriga e retira-se cuidadosamente todo o intestino, que já
é separado, lavado, fervido para mais tarde embutir o salame.
O próximo passo é cortar com um machadinho a coluna vertebral do porco
partindo-o longitudinalmente em dois. Corta-se a cabeça e reserva para ser
assada inteira, iguaria predileta de seu avô. Amarra-se os
pés traseiros e suspende as duas metades. Com faca de lamina
fina e bem afiada, inicia-se o processo de extrair a pele e a camada de gordura
que cobre toda a carne do porco. Os nacos de toucinho são retirados e levados a
uma mesa no porão onde sua bisavó e as vezes algumas vizinhas irão cortar o
toucinho em cubos e devolvê-los para o mesmo tacho que ferveu a água, e
agora irá fritar o torresmo para obter a banha, utilizada em larga escala
no lugar do óleo de soja ou para armazenamento da carne. Uma vez finalizado a
extração do toucinho, passa-se a destrinchar os pedaços de carne. As paletas e
o Pernil, partes com maior quantidade de carne eram desossados e moídos
manualmente para a confecção do salame. As partes menos carnosas
como o lombo, costelas, eram cortadas em pedaços menores e parte era
distribuída aos vizinhos, outra parte já era assada e guardada e outra ainda
era frita com o torresmo para ser armazenada junto com a banha. Já entrando na
tarde, o torresmo ficava pronto. A gordura era retirada e coada em panos de
pratos brancos e armazenadas em latas. Em uma prensa, retirava-se o máximo de
gordura dos torresmos que eram separados em outras latas. Nessa
altura as tripas já lavadas e secas eram cortadas no tamanho desejado do
salame. Os homens moíam a carne, preparavam o tempero e misturavam os compostos
para o salame. As mulheres enchiam as tripas com a carne moída. Eu devia por
uma semana ficar mantendo um fogo com ramos verdes para defumar os salames e
afugentar possíveis moscas. Sua bisavó com os restos das vísceras, cascos,
ossos, e um pouco mais de sebo de boi que compraram antes, no mesmo tacho
iniciava o processo de confeccionar o sabão. Era uma verdadeira operação de
alquimia. Ela calculava tudo mentalmente a quantidade de soda caustica
necessária para dissolver os ossos e as gorduras e depois de algumas horas de
ração em água fria iniciava um cozimento que as vezes durava uns
dois dias. Depois cortava os sabão e pendurava em tábuas em cima do tanque de
lavar roupa.
Apesar da vida dura do campo, de não ter nada mecanizado, de que tudo era feito
na força bruta, seus avós eram um casal bastante sociável. Iam constantemente
em bailes, festas de Igrejas e bailes do chopp. Colecionavam muitos canecos
destas festas. Sempre havia uma pessoa morando, “parando” na casa de seus avós.
Ou era um sobrinho que vinha pra poder estudar em Ibicaré, ou porque queria
sair da família dos pais, ou por necessidade mesmo. Os filho da tia Lina vários
deles passaram períodos na cada de seus avós. Angeline e Gininha, duas moças de
famílias muito pobres das terras de seu bisavô Antonio Bezem, praticamente
foram as babás minhas e de suas tias. Tia Cata, sempre visitava sua avó, e a
presença de parentes sempre foi uma constante, apesar da distância do restante
da família