sábado, 20 de junho de 2015

SER SUJEITO
Chovia. ​De dentro da repartição via os pingos chorando pela vidraça. Parecia que compreendiam o nó no peito, o engasgo que sinto todos os dias enquanto "copio e colo" súmulas respondendo aos pedidos de pobres diabos atrás das migalhas do sistema previdenciário. Nada faz sentido. Tudo é estranho pra mim. Olho para o relógio do micro. Está congelado, como a chuva fina com vento "minuano" lá de fora. ​Mesmo assim ​um sopro de alegria tomava conta de minha alma. Em breve poderia sair deste lugar e pegar minha bicicleta e enfrentar a chuva e o transito de SP​​Transito não é problema, faz parte da cultura paulistana, e geralmente o levamos, para onde vamos nos feriados e férias escolares. Chuva é algo inédito por aqui. Nos assanha. Ficamos eufóricos e saímos às ruas numa espécie de comemoração, devidamente vestidos com roupas impermeáveis de alguma marca famosa, lógico.​
Descobri que andar de bicicleta transforma a vida. ​Já nas primeiras pedaladas ​você percebe que ​algo ​está diferente. Cada ação sua já não é mais repetitiva, pré determinada, fiscalizada, fragmentada. Há um todo entre você, a bicicleta, o transito, a chuva, a cidade. ​Não há uma máquina te controlando nem um chefe dizendo o que fazer. Pedalando não há meta a ser cumprida, não se atende telefone, não se lê nem envia mensagens no wat zap nem há como compartilhar no Face. O controle passa a ser somente seu. A vida é sua.​ A vida é agora. ​​Andar de bicicleta na cidade de São Paulo é uma experiência de vida. Esvazia-se a mente, e uma nova percepção passa tomar o lugar de um mundo tão padronizado e adestrado no qual estamos inseridos. Os sentidos afloram. Os músculos frouxos do "homo sentadus' dá lugar à tensão, energia, e primitivos estados de atenção. O olfato, tão retraído pela mesmice do ar condicionado descobre mundos de odores e cheiros diversos. Frituras e o aroma fresco de fermento de cevada dos copos de cerveja nas mesas na calçada da Augusta. Mais a frente fragrância de eucalipto nas antigas e bolorentas saunas que ainda funcionam com suas luz vermelha na porta. Ensopado de carne vindo das quentinhas dos peões de obra nos vários arranhas céus que erguidos freneticamente. O centro de SP cheira a centro. Cheiro de comida de rua onde há movimento. Perfumes doces e baratos das putas nas calçadas.  De maconha nos cantos das praças e de urina e fezes nos escuros viadutos e becos. Da ponte das bandeiras que cruza o rio Tiete é possível ver a espessura do ar, com lufadas de podridão que sobem escuras do leito morto. Na periferia volta aromas agradáveis de jantares de mãe e dos petiscos nos centros gastronômicos da zona norte. E na subida do Tucuruvi, novamente o cheiro doce do eucalipto que gotejam das frondosas arvores da espécie que margeiam a avenida.
Andando de bicicleta você interage com o transito de uma outra forma. O outro deixa de ser um Fiat, um Wolkswagem, um Mercedes. Já é uma mãe buscando o filho na escola, um trabalhador voltando pra casa. Um casal indo namorar. Passamos a ver quem está dentro de um veículo. Com a bicicleta é possível se ver os olhos dos motoristas que te dão passagem. A bicicleta é e ao mesmo tempo não é um veículo. E a eterna oposição e luta por espaço dá lugar a uma coisa nova.

A bicicleta se torna um instrumento que quebra, por algumas horas, essa vida predicada que todos levamos no dia a dia. O andar de bicicleta, é obvio, não levará a nenhuma mudança substancial. Mas ajuda a entender o quanto estamos deixando de ser sujeitos de nossas vidas. Aceitando uma mediocridade em troca de um "ter" inconsistente, que "parece solido, mas que se desmancha no ar", como diria o filósofo.

sábado, 6 de junho de 2015

QUANDO NOS TORNAMOS COISAS ( PARTE 1)

Após um dia de reuniões e planejamentos, saímos para refrescar a vida com uns copos de chopes.  Foi lá que conheci Eustáquio, um pernambucano muito peculiar, “desgracioso, desengonçado, torto, fatigado”, como já o havia descrito Euclides da Cunha. Camisa xadrez por fora das calças e com as mangas dobradas cada uma de uma altura diferente e aquela estatura altiva que destoava da magreza de retirante,  dando-lhe a impressão de fragilidade,  algo que se disfasia de imediato ao se fitar o olhar fundo e o bigode de escovão que dominavam a aparência,  lhe impondo respeito, sobretudo quando soltava sua fala grave, acentuando o baixo da última sílaba que o sotaque lhe exigia.
Entre um copo e outro, falávamos, da vida, das mulheres e do trabalho no judiciário. Ao lhe perguntar se ele gostava realmente de mexer com processos, Eustáquio se desapoia do copo, traga o cigarro e me diz num sussurro de subwoofer : “rapaz, vou lhe contar uma coisa, eu só faço os processos mais difíceis de minha vara. Quando eu pego uma ação judicial pra fazer eu sento, acendo um cigarro ( na época era permitido fumar na repartição), bebo meu café, e fico  olhando aquele processo. Fico bem  uns 10 minutos só contemplando aquelas folhas amareladas. Não leio. Fico só sentindo ele. Só então em abro e passo a folheá-lo. Eu absorvo a essência das pessoas envolvidas naquele processo. E quase uma experiência mística. Eu nasci para destrinchar estes processos difíceis. Levo até uma semana, mas meu voto é  primoroso e nunca o Juiz mudou uma virgula sequer. Sei que estou fazendo justiça”.
            Hoje, há mais de 2500 quilômetros e quase vinte anos de distancia, voltei a lembrar de Eustáquio. Trabalho num dos gabinetes mais produtivos do TRF, talvez do Brasil. É um gabinete previdenciário, matéria que comporta quase 2/3 dos processos federais. As pessoas gostam de trabalhar aqui. A chefia é boa, não há controle rigoroso de horário, permite-se trabalhar em casa, fazer horário alternativo e há vários benefícios em folgas, desde que se cumpra uma meta de produtividade, aprovada em reunião. A maioria dos colegas defende a produtividade como uma forma eficiente de prestar serviços à sociedade, e fazer justiça.
Meu colega de mesa é um jovem analista do último concurso. Veste ternos bem cortados e gravatas da Hermés e camisas da Ralph Lauren ou Tommy Hilfiger que compra nas baciadas em Orlando. Mantem uma produção altíssima e participa do “Home Office” para ter mais tempo para estudar para concurso de magistrado, seu grande objetivo de vida. Outros colegas, de concursos anteriores se dividem entre os que dão o sangue na produção para gozar das folgas e outros que mantem uma média mais baixa e vão seguindo a vida mais comodamente.
Outro dia, conversava com um colega, falávamos de um processo de 3 volumes e umas 800 paginas e me lembrei de  Eustáquio.  Conversávamos que hoje não é mais possível e nem necessário ler o processo em todas suas minúcias. Pior que isso, quase não interessa mais os argumentos que o advogado apresenta na apelação. Para o servidor, o importante é ler e entender o pedido da parte e saber qual é o entendimento do desembargador quanto àquele pedido. O que interessa são os argumentos do magistrado sobre aquele assunto, mesmo que o advogado escreva a mais brilhante das teses no seu pedido ou no recurso, em regra, pouco será levado em conta.
Na verdade os advogados sabem disso, e se importam pouco com isso, desde que ganhem seus honorários. O próprio juiz ou desembargador também não se debruça sobre teses de advogados, ele segue as súmulas dos tribunais superiores. A “jurisprudência de base” deu lugar a “súmula vinculante”. E não é comum nem prudente uma instancia inferior se colocar divergente de outra superior. O magistrado deixa de se atentar aos argumentos do requerente e passa a seguir as orientações vindas dos Tribunais Superiores sobre aquela matéria.  É desta forma que está funcionando o poder judiciário e foi por esta porta que entrou a filosofia da produtividade e acabou por ganhar a consciência de todos os operadores do direito.
Isso muda toda a nossa relação com o trabalho. Não se trata de trabalhar menos, na verdade, as relações de trabalho mudaram. Meus colegas de hoje, da mesma forma que Eustáquio há 20 anos estão buscando prestar um serviço de qualidade para a sociedade, mas a fórmula mudou e agora o elemento quantidade torna-se preponderante ante a qualidade. Mais que isso, a quantidade é tida como qualidade. Nesta lógica, é mais viável um gabinete julgar 1500 processos por mês, num ritmo alto, do que fazer 500 com mais cuidado e atenção, pois mesmo se houver 300 embargos, o saldo de julgamento será positivo. Logo se entende que há mais qualidade global nesse método.
Trata-se de usar a lógica da produção industrial massificada. A lógica do “Recall” que mesmo prevendo erros,  não se para a linha de produção e o consumidor que volte pra consertar depois. Ou ainda como diria meu outro colega que foi sargento da infantaria: “a lógica da cavalaria, rápido e mal feito, no entanto eficiente”. 
Toda mudança é controversa. Sem entrar no mérito das vantagens para a sociedade deste método de gestão, não há como não notar as mudanças que o processo exerce sobre nós, trabalhadores do judiciário. Duas delas acredito que mereçam maior aprofundamento.
Primeiro é que, uma vez que há um nivelamento das dificuldades na execução de nosso trabalho, uma vez que a padronização é a via de regra. Consequentemente há uma diminuição do trabalho de pesquisa e elaboração teórica e a demanda pela igualdade de salários iguais para as tarefas iguais passa a ter mais peso do que as diferenças impostas pela escolaridade. Técnicos e analistas estão fazendo as mesmas tarefas e não vai tardar para este debate se torne uma de nossas pautas principais.
A segunda é mais profunda e menos perceptível. Tenho a impressão de que Eustáquio, mesmo com toda a precariedade das condições de trabalho daquela época, era mais “realizado” em seu trabalho. Havia uma separação clara entre ele, o sujeito da ação, e do produto de seu trabalho, o objeto.
O processo de produção em massa nos transforma todos em objeto, na coisa em si, na medida em que o produto final de nossa ação ( a digitação de um voto em um processo) deixa de ser um produto do nosso trabalho, na medida me que na essência não temos mais autonomia sobre a decisão. Nossa ação passa a ser racional, mecânica e fragmentada. Sem perceber, passamos a nos sentir estranhos a esse produto final, deixamos de ser os sujeitos conscientes no processo. Nos tornamos apenas objetos, ou como diriam dos dialéticos: “coisificados” .


quinta-feira, 4 de junho de 2015

MEMÓRIAS PARA MINHA FILHA (PARTE 2)



JK assumia a presidência e surfava numa onde de otimismo e prosperidade do povo brasileiro. O Brasil crescia, “cinquenta anos em cinco’, construía-se Brasília, a Indústria crescia, principalmente a alimentícia com a Perdigão nas margens do Rio do Peixe na década de 30 e posteriormente a Sadia criada na vizinha Concórdia em 1944 absorvendo a grande demanda de carne de frango e suína além da comercialização de grãos utilizados para ração animal.
Seus bisavós prosperavam, como todo pequeno proprietário do Sul do país prosperava mediante jornadas de muito trabalho na lavoura. E como o projeto era fazer o país crescer sobre rodas, não tardo e seu Ernesto comprou uma rural de segunda mão, mas muito bem conservada. Ter um carro naqueles cafundós era algo importante, no que pese o maior uso que se deu a Rural foi fazer o “Nino”, apelido de seu avô, leva-los mais vezes à missa dominical na igreja matriz de Abdón Batista, há uns 17 km do povoado de Santa Catarina onde moravam.
Mas não era só economicamente que a região prosperava. Havia otimismo no ar. E mesmo nos mais afastados rincões do interior do Brasil, a onda libertária e irreverente dos anos sessenta, que varria as civilizações centrais, fazia borbulhar o coração dos jovens​ do interior de SC.
O espírito da geração Rock in Roll contaminava até instâncias onde o “vanerão’ e a “rancheira’, ritmos tipicamente sulistas, dominavam nos salões de baile e o sertanejo raiz de Tonico e Tinoco e Tião Carreiro e Pardinho eram os hit do momento. 
Não sei bem ao certo, mas pelos registros fotográficos da juventude de seu avô Antônio, as tendências que dominavam no planalto central catarinense estavam bem mais alinhadas com os centros urbanos do sudeste ​ do que com as pradarias do extremo sul do país.
No lugar das bombachas e dos chapéus campeiro e botas cano alto, traje de festa de todo gurí que ​estava beirando a idade de namorar, típico do estado vizinho mais ao sul, seu avô e amigos posavam nas festas com ternos justos, de to​m único e escuros, sapatos pretos bico fino, meias de seda, gravatas finas e colarinho e lapelas compridas.  O toque final viria com o gel e brilhantina, indispensável para manter o topete. ​ Não havia cinema nem televisão, mas se via réplicas de jovens Presley e James Dean ( aliás seu avô tem uma foto que é a cara dele ).
Nunca pesquisei a fundo essa “anomalia” em terras de domínio gaúcho. Talvez se tratasse de uma rebeldia dos catarinenses,  resquícios da guerra dos farrapos, onde os “barriga verdes” como eram chamados, tomaram uma “cossa” dos gaúchos em algumas batalhas decisivas. O fato é que a cultura gaúcha, tão agressiva e dominante,  atingiu menos aquela região do que a tendência mundial que vinha com a onda de rebeldia e ventos libertários desta década.
Para as mulheres os ventos da liberdade não sopraram com tanta força. Sua avó Maria foi vista algumas vezes com uma "mini" saia com dois dedos acima do joelho. Mas somente nas festas particulares em que eram dadas na casa de seu bisavô Antônio Besen, sob a supervisão da sua bisavó Virgínia.
Seu avô era um rapaz muito bonito.  Não se sabe se foi namorador. Nunca comentou nenhum caso amoroso antes de se casar com sua avó. Já sua tímida e recatada avó Maria Erandina ( Dina, como era chamada ) ,  por um bom período gerou crises de ciúmes em seu avô por um namorico que teve com o ​Dejalma, um cultivador de mel de abelha ( que seu avô afirmava ser o pior de SC:“ mel aguado!” ) e também fotografo oficial da famílias da região.
​Dizem que seu avô Antonio teve uma infância muito mimada. Nasceu em 43, num momento de prosperidade de seus bisavós. O pós guerra foi bom para o sul do Brasil. Os produtos agrícolas e principalmente a criação de animais rendiam boas economias para as famílias de pequenos produtores do Sul. Prosperavam com muito trabalho e com o florescimento da indústria alimentícia da região
Apesar da dura rotina de trabalho de quase 12 horas diárias na lida, as coisas tinham melhorado para os “Klein”. O nascimento do primogênito trouxe algo que não se conhecia ou não se manifestava nos seus bisavós: ternura. Desde então, seus bisavós se mostraram as pessoas mais amáveis do mundo com crianças. Todas as crianças com quem conviveram, sejam afilhados, netos, vizinhos sempre foram muito bem tratados e tem uma lembrança muito amável do Seu Ernesto e da Dona Lucia.
Logo após o nascimento do primogênito, seu bisavô teve caxumba mal curada e acabou "descendo" e inflamando os testículos, esterilizando-o. Não era algo tão incomum nessa época sem médico nem hospitais. Talvez tenha sido o fato de se verem reduzidos a um filho único, num mundo cheio de famílias onde a média era 10 filhos. Talvez porque conseguiram descobrir uma ternura que nunca tiveram ou receberam na vida na relação com o filho. O fato é que seus bisavós não demonstravam a dureza que a vida lhes impusera, quando se tratava de afagar uma criança.
Desta forma, consta que seu avô cresceu com todos os mimos e caprichos que uma criança poderia receber. ​Talvez exagerado. Contam que era uma criança muito "bardosa". Choramingava o tempo todo e suas chantagens eram prontamente atendidas com presentinhos e concessões de caprichos. ​Pelos relatos dos seus bisavós e do que sua avó Maria ouviu falar dos antigos, seu avô Antônio foi uma criança muito bem tratada. Mimada, na verdade. Tinha sempre boas roupas e sapatos, ia a missa com os cabelos lambidos, na primeira fila, e era ele que levava ao altar as gordas doações que seu bisavô fazia na hora da oferta da missa​, aos olhos de todos, claro. Há registro fotográficos de sua infância, já por si só algo raro para a época, onde seu avô é visto em boas roupas, com chupetas sofisticadas ( que usou até os 5 anos de idade ), cavalinhos de pau com madeira trabalhada e até um pônei ou um cavalo nanico, não se sabe ao certo, mas ainda criança se exibia em cima de arreios infantis que não era para qualquer um.
Seu avô tem versão diferente de sua infância. Reclama que sua mãe lhe comprava um sapato novo 2 números acima do seu e o fazia usar até ficar 2 números menor, a ponto do pé ficar torto dentro do sapato tão pequeno. Lembra que quando ia ao culto aos domingos, tinha que vir descalço até perto da igreja e colocar o sapato atrás da sacristia e ficar com o sapato apertado, lacrimejando de dor até acabar o culto. Diz ele que até hoje tem trauma e quando vai numa missa parece que sente os pés apertados lhe queimando os dedos como na sua infância. Por isso vai pouco à missa.
Suas melhores lembranças são de uma vida solta e livre pelos potreiros e vassourais caçando, montando mondeis e pescando nas sangas e riachos da propriedade. Sempre descalço.
Conta que a paixão pela caça e pela pesca veio desde cedo, e o acompanhou pela vida toda. Só deixou de fazê-lo quando o AVC o impossibilitou, já com mais de 60 anos. Mesmo depois de ter mudado para Ibicaré, constatou que aquela propriedade era ideal pra seus passatempos. O cimo da serra era recapado de uma mata nativa, com muitos pássaros, principalmente o Jacú, uma galinha do mato, além de cotia e tatu. No outro extremo da propriedade estava o Rio do Peixe, que como o nome já diz, oferecia várias modalidades de pesca, desde Lambaris, Bagres e Jundiás nas corredeiras, Cascudos nos remansos e Carpas nos poços de água parada. Bastava uma chuva que impedisse o trabalho na roça, que lá estava ele com suas linhas de pesca descendo o potreiro rumo "à pedra" lugar preferido para pegar peixes ligeiros de corredeiras como o lambari e o jundiá. 
Quando era menorzinho, em Abdon Batista, todos os dias montava armadilhas e pegava muitos pássaros. O que cantavam ou tinhas penas coloridas como Canários, Azulão, Pintassilgos, Coleirinha, Sanhaços, Cardeais, Curiós, e Papagaios, eram preservados e trancafiados em gaiolas ou em um viveiro que seu bisavô, outro aficionado por pássaros, construíra atrás do galinheiro. Já os gorduchos e feinhos com os Pombos, Bem-te-vis, Sabiás, Nambus, Saracuras e até Sirienas tinham como destino a panela de sua bisavó.
O “amor” aos pássaros é um capítulo à parte na história dos Klein das primeiras gerações. ​A casa de seu bisavô era decorada com dezenas de gaiolas com as mais variadas espécies de pássaros cantadores. Ele mesmo aprendera a construir essas masmorras onde, para seu deleite, sentenciavam ao cárcere perpétuo lindas avezinhas. Dizia que era amor. Demonstrava amor pelos seus cativos, que com o tempo, acabavam se afeiçoando a ele também, vindo lhe comer na mão. Havia aos montes na natureza e seus cantos eram ouvidos a qualquer hora do dia em qualquer lugar. Não havia muito motivo para o aprisionamento. Mas ninguém o demoveu desta ideia até os últimos dias de sua vida, quando doou todas suas aves para um amigo, que ele confiava, pois dizia que este amigo era de confiança e amava seus pássaros e não iria soltar pra morrer de fome na natureza. ​A explicação mais plausível e menos cruel que encontrei para justificar esse amor, que era real, foi justamente o fato ​de que para seu bisavô, assim com para inúmeras pessoas simples que tiveram um passado difícil e passaram necessidades, ter o que comer e ter onde morar era algo essencial, de forma que quase tudo o resto era visto com supérfluo, quase que desnecessário, inclusive a liberdade e outros valores que tanto preservamos hoje.

Mas a vida dos klein´s desta época sempre foi marcada por muito trabalho e muita disciplina. A vida no campo, ao contrario do que possa parecer, só prospera quando se tem disciplina e certa sistematicidade. Pelo menos é assim com os colonos do sul do país. No campo a vida corre num círculo eteno. Diariamente. Semanalmente. Anualmente. O tempo é circular. Repete-se diariamente. Repete-se anualmente sempre do mesmo jeito a cada estação do ano. E nesta luta eterna contra a natureza, ora dominando-a, ora sofrendo com ela, na verdade, nesta contradição, neste movimento eterno de interação dialética faz com que o homem do campo,  na busca por humanizar os espaços naturais, acabe se tornando um ser mais “natural” do que os povos da cidade. Seus antepassados “kleins” tiveram muito dos “jeca tatu”, dos ‘mazaropes”, dos matutos todos representados como o homem do campo brasileiro.
Acordar cedo era uma regra sagrada. Muito cedo. Cinco da manhã, todos os dias. Pra tirar o leite, tratar as criações e preparar-se para a primeira jornada na roça.​ Seu avô, ainda há alguns anos debatia com seu bisavô ( sempre aos berros ) que era uma idiotice fazê-lo levantar-se às 5 hs da manhã, com temperaturas abaixo de zero, pra picar capim para as vacas, que só comeriam bem mais tarde, pois estavam ainda na estrebaria. Mas as coisas "eram assim, porque eram assim" simplesmente respondiam os seus bisavós. E seu avô ia todo dia, choramingando de nojo, rachando os garrões no frio da geada, mas ia, desde pequeno.
Sua bisavó tirava o leite ainda escuro e seu bisavô tratava os porcos.
Logo em seguida pegavam os apetrechos, a marmita e iam pra roça, "pegar a fresca". Lá pelas 8 hs paravam para o café da manhã, que era um pão com “chimia” e nata ou queijo. Lá pelas 11hs voltavam pra casa. Sua bisavó finalizava o almoço, que geralmente faltava só fritar uma carne na frigideira com banha de porco enquanto seu bisavô cuidava dos porcos e das galinhas. Seu avô aproveitava para vistoriar as armadilhas próximas da casa.
Seu bisavô tinha o hábito de beber um cálice de Bitter Águia. “Abria o apetite e engrossava o sangue”. Quando não tinha Biotonico Fontoura ou Sadol em casa, fortificantes indispensáveis para as crianças de minha geração, ele nos dava uma colher de Bitter, dizendo que fazia bem do mesmo jeito.
Após o almoço, quando era época de fruta, se sentavam na “área” da casa e descascavam uma baciada de laranja, goiaba ou iam buscar uma melancia que ficava " gelando" mergulhada dentro da sanga há alguns metros da casa. Todos deitavam e dormiam até as 16hs, quando se voltava pra roça até escurecer.
Á noite, o ritual de recolher e tratar as vacas, dar ração para os porcos, recolher as galinhas e pegar os ovos era sagrado, inclusive aos finais de semana. Todos os dias. Durante todo o ano.
Em Abdon Batista não havia eletricidade ainda. Não no interior, na roça. Seu avô passou a infância sem saber o que era uma lâmpada. O rádio era a pilha. O “repórter Esso” era o programa sagrado, com as reportagens do Brasil e do mundo. Sua bisavó não gostava, mas sua avó acompanhava as radionovelas da época. Aos sábados á tarde, dia do banho mais demorado, seu bisavô, num ritual sistemático ligava Terminado o trabalho, passavam no tanque de roupa, próximo a casa que tinha água da bica sempre escorrendo e se lavavam para o jantar. Em dias de muito frio, lavavam-se em gamelas com água morna na porta de casa. Após um jantar silencioso, rezava-se o terço. Todos os dias. Sem ter opção do que fazer, dominam muito cedo. Seus bisavós mantiveram esse habito até a morte. Acordar muito cedo, almoçar ao meio dia em ponto. Dormir com as galinhas.
Seus avós casaram-se muito jovens. Fizeram uma festa com muitos convidados. Carnearam um novilho e fizeram uma bela festa, tudo registrado em preto e branco pelo fotografo Dejalma. A lua de mel foi em Aparecida do Norte.
            Logo após o casamento ocorreu o incidente do moinho e a mudança do seu bisavô para Ibicaré.
            Seus avós foram juntos. Sua avó, que era muito apegada a sua família não ficou muito feliz, mas aceitou como todas as moças faziam na época. Com umas dezenas de Araucárias que foram compradas do seu bisavô Antonio, a um preço camarada, seu Avô e alguns carpinteiros construíram uma grande casa de madeira, com paredes dupla. Um luxo para a época. Foi lá que eu, suas tias Marli e Cleusa nascemos e  passamos parte da infância.
            A casa era grande. Construída em um terreno desnivelado, tinha duas entradas na parte de cima. Uma dava para a sala de estar, que tinha um sofá grande e anos depois foi adquirida uma televisão, colorado RQ, preto e branca, que tinha como garoto propaganda nada menos que o Pelé.  Havia uma varanda que circundava essa parte da casa, chamávamos de “área” e eu detestava porque tinha que escovar com palha de aço, encerar e lustrar com o escovão todos os sábados. Na outra extremidade da área tinha a porta da cozinha. A cozinha ara a parte mais importante e animada da casa. Tinha uma mesa grande e cadeiras de palha, onde se faziam as refeições, as lições da escola e jogava-se canastra com os vizinhos. Havia 3 grandes janelas, uma em cada parede. Um fogão a lenha esmaltado ocupada o lado oposto da mesa. O fogo era aceso bem cedo e permanecia sendo alimentado até que o movimento da cozinha serenasse, quando se acabava de lavar a louça e seus avós iram tirar a sesta até a fresca da tarde,  antes do retorno à lida. Sempre havia uma chaleira com agua quente para o chimarrão. Nos dias frios dos invernos catarinenses, o fogão era um dos utensílios mais apreciados da casa, pois além de aquecer todo o ambiente, costumava-se assar milho, batatas doce e muito pinhão na chapa. Um guarda louça de madeira, um paneleiro uma pia pequena e um fogão a gás compunham toda a mobília da cozinha, e como era grande, havia muito espaço livre, onde as crianças adoravam brincar, correr e passavam a maior parte dos dias frios e chuvosos.
Do lado sul da casa ficavam os quartos. Eram quatro. Os dos seus avós era o maior. O meu e do de suas tias ficavam no meio e o último ficava vazio e arrumado e intocado para visitas. Em baixo tinha um porão enorme e ficava o chuveiro. A agua quente do chuveiro devia ser despejada em um recipiente próprio que ficava em cima, na despensa, ao lado da cozinha. Esquentava-se a agua no fogão, despejava-se no recipiente e dava a volta por fora da casa até o chuveiro no porão. Bem trabalhoso.
O sanitário, “patente” como chamávamos, era afastado da casa. Era uma casa de madeira em cima de uma fossa. Era muito bem feita e muito limpa. Tinha um tampa de forma que não deixava escapar odores desagradáveis. Todo dia eu tinha que recolher as cinzas do fogão e despejar na fossa, uma medida eficaz de higienização.
A casa de seus bisavós ficava há uns cem metros mais acima e era uma casa de modelo mais antigo. Destacava-se para nós crianças por apresentar algumas peculiaridades que a transformava-se em misteriosa, interessante e ao mesmo tempo assustadora.
A casa tinha um cheiro doce. Nunca soubemos o porque, mas provavelmente era porque no porão havia três grandes “Pipas” onde se armazenava o vinho produzido anualmente. Vinho doce e perfumado de uvas gaúchas. Todo dia eu deveria ir até lá e retirar uma jarra daquele suco alcoólico para seu bisavô e seu avô. Creio que este mesmo cheiro adocicado foi se impregnando na casa no decorrer das décadas.
Na casa de seus bisavôs havia um sótão, com uma grande antessala e dois pequenos quartos em estilo chalés. Num dos quartos estava a primeira cama de seus bisavós com o colchão de palha de milho e os travesseiros de flor de marcela. Havia baús, balanças antigas, capas de chuva de cavaleiros, chapéus, e muita poeira. Como as janelas estavam sempre fechadas, era escuro e tenebroso. Seus bisavôs não gostavam que fôssemos brincar no sótão. Proibiam e raramente deixavam a gente subir. Pra garantir que não desobedecêssemos sempre contavam histórias de “monstros do sótão”. Sempre havia a oportunidade de subir quando estavam dormindo após o almoço, mas a escada de madeira fazia muito barulho e sempre nos denunciava na tentativa de explorar aquele lugar tão fascinante aos nossos olhos.
            Morávamos há três quilômetros da cidade. Éramos vizinhos dos Spoltti. Do lado de Joaçaba moravam o Angelo Spoltti e a comadre Sueli. Do lado de Ibicaré moravam o Miro Spoltti e a comadre Elida. Em seguida eram as propriedades da Nonna, a matriarca dos Spoltti, que já era bem velhinha. Seguindo morava o Gildo Schu, uma família de alemães com muitos filhos, que estudavam na mesma escola que eu. Depois vinham as terras do Salvatore. Não lembro o nome dele. Lembro que pouco antes da cidade morava o Pedro Dotta, que era casado com uma costureira muito boa e sua avó era amiga dela.
            A relação com os vizinhos sempre foi amigável. Mas havia uma espécie de competição no ar. Quem tinha os melhores porcos, as melhores colheitas, as melhores galinhas. Mas acho que era algo saudável.
            Em Ibicaré o forte não era a agricultura, com era em Abdão, mas sim a pecuária, principalmente a venda do leite e a criação de porcos. Foi o momento de grande crescimento dos grandes laticínios e frigoríferos que prosperaram em Santa Catarina, como a Sadia e a Perdigão. Enquanto seus bisavós se dedicaram mais ao leite e a lavoura, seu avô construiu um enorme chiqueiro para criação de porcos, que passaram a fazer parte de nossas vidas.
            O suíno é um animal marcante. Dizem que é muito inteligente, que pode ser domesticado em casa e pode se equiparar aos cães em comportamento. Mas vivendo em cativeiro, em baias com 20 indivíduos, não é a esta lembrança romântica que fica.
A primeira coisa que impregna na vida de um criador de porco é o cheiro de estrume. No caso do suíno o nome correto é “merda” mesmo. Os chiqueiros precisam ser limpos todos os dias. Boa parte do tempo de trabalho com a criação de porcos, nos método antigo daquela época, era a remoção diária de montanhas de estrume que fedem como o humano. Dizem que o olfato é, dentre todos os sentidos aquele que nos remete mais à nossa condição animal. Com nossa evolução ele foi sendo reprimido pelo paladar, visão e tato, mas tem uma ligação importantíssima com nossa memória. Ainda hoje, nas estradas, ao passar um caminhão com porcos o odor me remete imediatamente para minha infância e todas as lembranças florescem imediatamente.
Outra coisa que impressionante são os gritos dos porcos. Parecem-se muito com gritos humanos. E numa criação de grandes proporções como seu avô tinha, os gritos dos porcos eram uma constante em no nosso dia a dia. Gritam quando tem fome, quando tem sede, quando brigam. Você ouve gritos de porcos o tempo todo.
Onde há porcos e merda de porco há moscas. Muitas moscas. O chiqueirão eram sempre construídos próximos às casas, seja por falta de planejamento, seja por questão de praticidade e segurança, o fato é que era como se fossem quase como uma parte da casa. De lá vinham verdadeiros enxames de moscas. Como as pragas do Egito. Em algumas épocas, chegavam a escurecer o teto da cozinha da cada de seu avô. As crianças filhos de criadores de porcos como eu, sabem fazer todos os tipos de brincadeiras com moscas, desde amarrar várias para fazerem levantar objetos, até arrancar as assas e transformá-las em bichos terrestres.
            Mas foi com a suinocultura que seu avô prosperou. Todos se lembram da vez que com uma única venda de uma leva de porcos para a Sadia,  ele conseguiu comprar a vista uma picape da Ford, com o cambio na barra de direção, novinha em folha, que fomos eu e ele buscar na concessionária de Joaçaba.  
            Havia um ritual entre os vizinhos mais próximos. Quando um matava um porco para o consumo próprio, se entregava parte da carne para o vizinho. Como não havia geladeira, era um método eficiente para sempre se ter uma carne mais fresca em casa. Eu tinha a incumbência de sair entregando uma paleta pra comadre Sueli, um lombinho pra comadre Elida, uma costelinha pra Nonna.
            Dia de matar porco era um dia especial. Tinha que coincidir com um dia de chuva ou de pouco trabalho na roça. Geralmente aos sábados. Acordava-se cedo e já se acendia o fogo com um tacho de ferro enorme, de uns 200 litros, com água que ficava fervendo. No dia anterior sue avô escolhia um porco gordo e não muito velho e separava.  Quando a água estava quente ele trazia o porco pelas orelhas e deitava de pernas pro ar. Eu tinha que segurar as pernas de traz do porco. Sua avó segurava as pernas da frente e seu avô segurava a cabeça junto ao chão. Com a faca prateada, um punhal que seu avô só usava pra carnear animais, ele localizava exatamente onde o coração estava batendo e enfiava rapidamente a faca. O porco gritava e esperneava muito, mas por pouco tempo. Morria rápido. Com um pedacinho de pano trancava-se o buraco para não sair o sangue. Com canecos pegava-se a água  fervente do tacho e jogava-se no porco já morto. Com uma faca grande ia-se raspando todos os pelos e a pele que saiam com facilidade devido a agua fervente. Raspava-se todo o porco. Feito isso, sempre em cima de um tablado, depois de tudo limpo, colocava-se o porco de barriga pra cima e seu avô  começava a abrir o porco. Inicia-se pelo pescoço e serra-se o osso do peito. Com um caneco, retira-se todo o sangue que derramou na caixa torácica. Será usado para fazer chouriço. Uma vez aberto o peito, retira-se o coração, rim, fígado, que já iam para um espeto para serem assados ainda de manhã no braseiro ao lado, e os demais órgãos, como pulmão, estomago, vesículas que eram reservados para fazer sabão. Corta-se a barriga e retira-se cuidadosamente todo o intestino, que já é separado, lavado, fervido para mais tarde embutir o salame. O próximo passo é cortar com um machadinho a coluna vertebral do porco partindo-o longitudinalmente em dois. Corta-se a cabeça e reserva para ser assada inteira, iguaria predileta de seu avô. Amarra-se os pés traseiros e suspende as duas metades. Com faca de lamina fina e bem afiada, inicia-se o processo de extrair a pele e a camada de gordura que cobre toda a carne do porco. Os nacos de toucinho são retirados e levados a uma mesa no porão onde sua bisavó e as vezes algumas vizinhas irão cortar o toucinho em cubos e devolvê-los para o mesmo tacho que ferveu a água, e agora irá fritar o torresmo para obter a banha, utilizada em larga escala no lugar do óleo de soja ou para armazenamento da carne. Uma vez finalizado a extração do toucinho, passa-se a destrinchar os pedaços de carne. As paletas e o Pernil, partes com maior quantidade de carne eram desossados e moídos manualmente para a confecção do salame. As partes  menos carnosas como  o lombo, costelas, eram cortadas em pedaços menores e parte era distribuída aos vizinhos, outra parte já era assada e guardada e outra ainda era frita com o torresmo para ser armazenada junto com a banha. Já entrando na tarde, o torresmo ficava pronto. A gordura era retirada e coada em panos de pratos brancos e armazenadas em latas. Em uma prensa, retirava-se o máximo de gordura dos torresmos que eram separados em outras latas. Nessa altura as tripas já lavadas e secas eram cortadas no tamanho desejado do salame. Os homens moíam a carne, preparavam o tempero e misturavam os compostos para o salame. As mulheres enchiam as tripas com a carne moída. Eu devia por uma semana ficar mantendo um fogo com ramos verdes para defumar os salames e afugentar possíveis moscas. Sua bisavó com os restos das vísceras, cascos, ossos, e um pouco mais de sebo de boi que compraram antes, no mesmo tacho iniciava o processo de confeccionar o sabão. Era uma verdadeira operação de alquimia. Ela calculava tudo mentalmente a quantidade de soda caustica necessária para dissolver os ossos e as gorduras e depois de algumas horas de ração em água fria iniciava um cozimento que as vezes durava uns dois dias. Depois cortava os sabão e pendurava em tábuas em cima do tanque de lavar roupa.

            Apesar da vida dura do campo, de não ter nada mecanizado, de que tudo era feito na força bruta, seus avós eram um casal bastante sociável. Iam constantemente em bailes, festas de Igrejas e bailes do chopp. Colecionavam muitos canecos destas festas. Sempre havia uma pessoa morando, “parando” na casa de seus avós. Ou era um sobrinho que vinha pra poder estudar em Ibicaré, ou porque queria sair da família dos pais, ou por necessidade mesmo. Os filho da tia Lina vários deles passaram períodos na cada de seus avós. Angeline e Gininha, duas moças de famílias muito pobres das terras de seu bisavô Antonio Bezem, praticamente foram as babás minhas e de suas tias. Tia Cata, sempre visitava sua avó, e a presença de parentes sempre foi uma constante, apesar da distância do restante da família

quarta-feira, 3 de junho de 2015

SOBRE CACHORROS E DEMOCRACIA.

Lord é o meu cachorro. É um  vira-lata de porte grande com cara de Labrador. Ele sabe sentar, deitar, dar a pata, pegar o jornal,  fechar a porta, fazer necessidades no cantinho do jornal e andar sozinho no canteiro central da avenida. É um cachorro adestrado, basta um comando e ele prontamente me atende. Quando saio para passear com Lord, solto ele no canteiro central da avenida e me alegro vendo-o trotando altivo, rabo pra cima e um sorriso esnobe, principalmente quando passamos por outros cães desengonçados, como o Torresmo, o Rottweiler do vizinho, que todo dia arrasta seu dono pela coleira: bárbaro!. Lord anda direitinho ao meu lado e pára e senta ao meu comando. Às vezes nos deparamos com algum vira-lata de rua. Cachorros sem modos que atravessam a rua fora da faixa. Atrapalham o transito. Outro dia um deles ainda olhou com desdém para Lord, que permanecia sentado ao meu lado. Em breve a carrocinha o recolheria. Mas aquele olhar ficou a semana toda me incomodando.
Mais tarde, lendo Michel Foucault, em seu famoso livro Vigiar e Punir, acabei me surpreendendo com as semelhanças do meu mundo e o mundo que criei para Lord, meu cachorro.
Foucault ao estudar as reformas penais do início do século XIX, observou que os métodos violentos e corporais de punição, como o suplício público, onde os castigos corporais exemplares estavam no centro das tecnologias punitivas, passam a dar lugar a novas técnicas mais sofisticadas, onde o centro deixa de ser o corpo, e passa a ser a mente, através de técnicas de controle do tempo, do silencio forçado, da disciplina coletiva, das micropenalidades corporais constantes e prolongadas dentro de uma prisão.
O mundo estava mudando e já não havia mais espaço para o poder soberano e inquestionável do nobre ou do senhor feudal. Surge uma nova tecnologia para punir, com controle minuncioso das operações do corpo, não mais baseada no castigo físico, mas na disciplina das prisões. Trata-se de métodos sofisticados de adestramento do criminoso, com controle de horários e atividade, sob uma vigilância constante, para que ele volte seu comportamento para dentro das normas, dentro da curva.
Foucault acaba por concluir que as práticas disciplinares própria da prisão têm um alcance que vai muito alem dos muros da instituição, ao constituir tecnologias de poder que, partindo das práticas prisionais, espalham-se por toda a sociedade. Essas técnicas de “adestramento”, de controle do tempo, de disciplina organizativa são adotadas com muito êxito nas fábricas, nas empresas, nos nossos tribunais e até no interior das famílias e das escolas, que se utilizando de tais técnicas, acabam desempenhando um papel central na manutenção das relações de poder na sociedade moderna. Nas palavras do estudioso: “ há uma rede carcerária sutil envolvendo todo o corpo da sociedade moderna”.  Aprendemos desde cedo sentar, deitar e dar a pata. 
Uma vez adestrados, e só a partir de então, foi possível soltar Lord no canteiro central da avenida. Da mesma forma, os que dominam podem lançar mão de sistemas ainda mais sofisticados de controle, como a democracia. Como meu cachorro Lord, somos livres para andar soltos no canteiro central da avenida, desde que sempre vigiados e obedecendo as normas. Aos que não se adaptam, aos que andam fora da curva, que ‘defecam’ fora do jornal resta-lhes as focinheiras ou a carrocinha.
Passei a olhar diferente para o Lord, que sem saber, é mais prisioneiro que Torresmo, apesar de andar feliz pelo canteiro central da avenida. Não tive pena de Lord, afinal, sou eu o adestrador, mas pensei em nós, que vivemos abanando o rabo para nossa liberdade democrática. Democracia para os adestrados.

Claudio Klein

Claudioklein66@gmail.com

sexta-feira, 29 de maio de 2015

MEMÓRIAS PARA MINHA FILHA

PARTE 1
Deve ter sido por volta de final de 80, início de 90. De 1890. Seu trisavô nasceu. Não se sabe ao certo, a não ser que foi  em uma vila da Alemanha, que era pobre... e por desespero ou coragem largou sua terra e veio se aventurar no Brasil.
Pode ser que era um aventureiro, acometido dos mesmos males que empurraram tantos europeus para o mar, em busca do que havia atrás do horizonte... Pode ter sido Um refugiado. "klein" era um nome comum que se dava as pessoas despossuídas ou convertidos para se livrarem de uma punição
maior.
Mas provavelmente era um camponês pobre que veio em busca de novas
oportunidades. Veio num destes cargueiros a vapor que cruzavam o atlântico. Provavelmente viajou entre uma multidão de iguais, maltrapilho e sem muitos recursos. A migração de alemães para o RS foi financiada, organizada e patrocinada pelo governo. Já em SC foi um empreendimento particular, onde os colonos pagaram pela viagem e pela hospedagem em terras brasileiras. Vinham com objetivos de trabalho.
Sabe-se que aqui se casou e teve filhos. Estabeleceu-se no município
de Biguaçu, o destino dos emigrantes germânicos desta época. Mas seus trisavôs faleceram cedo. Seu bisavô não tinha ainda 5 anos. Como de costume os órfãos eram criados pelos padrinhos. Eram "criados", como diz o nome em nada se compara com as adoções de hoje. Seus bisavôs perderiam pra sempre a condição de filho. Não
saberiam o que é proteção dos pais. Desde pequeninho teve que trabalhar. Nunca frequentou uma escola. Morreu sem aprender a ler e
escrever.
Talvez por isso seu bisavô nunca falou sobre sua infância e sua ou adolescência. Buscamos  sempre esquecer as dores e os sofrimentos, muitas vezes não falando sobre eles.
As memórias de seu bisavô Ernesto começa no lombo de uma égua de pelo
baio. Uma mala de couro. Uma espingarda 28 cano longo. Um chapéu de couro e capa pra chuva e para o frio. Menos de quatorze anos o separavam da morte dos país.
Nunca herdou nada de seus padrinhos e país adotivos. Nunca falou sobre eles...nem bem nem mal... e nunca cobrou qualquer coisa desta gente... que também  emava contra a vida para manter e sustentar seus filhos legítimos. Dos 5 irmãos que foram separados com a morte dos pais, pouco se sabe. O tempo foi afastando até as  embranças. Cada um para um canto. Cada um com um padrinho. Fala-se de um tal Pedro, que foi adotado por um capitão de navio que o aceitou no porto de Tubarão e que soubera-se que seguiu a carreira do padrinho. Mas nunca ninguém o viu ou trocou informações.
Subindo o rio biguaçu, há uns 20 km da foz, fundou-se uma colônia sólida de alemães, em Antonio Carlos. Por medo dos "bugres" desta região, que eram muito selvagens ainda no séc. XIX, subir a serra e estabelecer-se nos campos de planalto passou a ser uma opção bastante atrativa para os colonos do litoral.
Aos 19 anos seu bisavô Ernesto subiu a velha trilha Biguaçu-Lages, levando uma semana inteira para subir os caminhos tortuosos que levam até os campos de altitude e as florestas de araucária da região.
Gostou dos campos serranos , mas acabou amarrando a égua cansada numa num pé de pinheiro novo nas serrinha de Campos Novos. Precisamente nas terras de Abdon Batista.Capela de Santa Catarina. Lá se enturmou com os Martendais, os Mercabôs, os Vilperts. Depois mais tarde vieram os Pauli, os Conradi, os Besen, os Kreff, os Souzas
e tantos outros que colonizaram aquelas pastagens.
Arrendou dois alqueires de roça, “às meias”, de Ângelo Martendal. Cortou a mata, limpou com queimada, “coivara” como nominavam esta técnica. Plantou mandioca e voltou para buscar Luzia sua bisavó que o aguardava em Biguaçu.

Luzia perdeu seus pais mais cedo ainda, sendo criada também  pelos padrinhos/tios, irmão mais velho de sua de sua falecida mãe. Foi criada pela família de João Kesser. Também não soube o que é amor de pai, mas sempre dizia que sentia saudades da sua infância, das brincadeiras e da escola primária que teve o privilégio de fraquentar.
No casamento, conta que ganhou um jogo de lençóis, um jogo de louça (
que agora está com sua tia Sandra ) e uma boneca de louça. Feliz, puseram tudo numa
charrete e subiram de novo a serra para colher a mandioca.
Ficaram pousando na casa dos Martendais até que finalizassem a primeira casinha. Dois cômodos de chão batido e paredes de taipa ( barro e cipó). Telhado de capim seco e arrumaram um colchão de palha de milho novo, e travesseiros de flor de marcela, cedidos pelos dona Carolina Martendal.
Em nossa fantasia classe média paulista, imaginamos os momentos
românticos e carinhosos do casal jovem e recém casados. Nunca admitiram. Pode ser que estejam falando a verdade, pois nunca conheceram ternura nas suas jovens vidas. Poderiam ter aprendido. Mas as histórias desses tempos são histórias de trabalho. De acordar cedo. De plantar e colher mandioca. De ralar toda a produção. De
passar horas no fogo secando a farinha. Se ensacar e transportar até a
venda. Depois cortar mais mata. Queimar. Plantar mais roça de mandioca.
A mandioca é uma das melhores culturas agrícolas para o pequeno
produtor. A colheita não precisa ser feita imediatamente após o
período ideal. Não há a urgência de uma colheita de outros cereais, que perecem se for feita fora do prazo. Nas entressafras, aproveitava-se para levantar uma parede de madeira, erguer um cercado para galinhas e porcos, cultivar uma horta.
Nesse ritmo, nas Serras Profundas de Santa Catarina, seus bisavós
foram comprando pedacinho por pedacinho de terra, até que dez anos
depois já eram proprietários de terras respeitáveis na região.
Cultivando terras boas, criando gado leiteiro, seus bisavós prosperavam no pós-guerra, principalmente com os incentivos desenvolvimentistas da era Vargas e posteriormente do projeto de Juscelino.
Passatempo e diversão tinham somente no culto de domingo. A missa na
Capela de Santa Catarina ocorria uma vez a cada dois meses. No entanto, todos se reuniam aos domingos para a celebração do culto. Mulheres com seus vestidos alongados e floridos, trocavam receitas e experiências. Os homens, sempre de terno e chapéu, falavam de gado, cavalos enquanto cheiravam rapé. Duas vezes por ano havia uma festa. As famílias se reuniam para ajudar e outras comunidades vinham prestigiar. O dinheiro das vendas de bebida e churrasco eram destinados a reformas e melhorias da capela e do salão de festas. As meninas e os meninos aproveitavam para pequenas  estripulias amorosas.
Seus bisavós eram populares na comunidade. Falantes, geralmente dominavam as rodas de conversas que participavam.
Sua bisavó Luzia era famosa pelas respostas rápidas e espirituosas.
Desde jovem era temida pela sua língua afiada. Mas cultivava as amizades. Não media esforços para ajudar uma amiga necessitada. Acudia a todos quando havia enfermos em uma família. Era rezadeira e seguia um ritual metódico de visitas regulares aos mais idosos e enfermos da região. Com o tempo e com o peso que foi adquirindo, tornou se uma Dona Lucia muito respeitada por todos os vizinhos e parentes. Seu
prestígio era medido em número de afilhados que batizou, crismou ou testemunhou casamentos.
Seu bisavô era muito festeiro. Falava sempre mais alto que os outros e acabava por dar a última palavra, inaugurando uma tradição peculiar na família. Quando ainda jovem, tratou de comprar o melhor cavalo de "carreira" da região. Cavaco era um cavalo baixinho mas muito rápido. Sempre após o culto faziam apostas e disputavam em raias improvisadas. Seu bisavô era o melhor corredor da comunidade. Se gabava muito disto. Era um homem orgulhoso. Não  gostava de ser  contrariado e muito menos humilhado em qualquer tipo de disputa. Quando isso acontecia ficava bravo e saía de perto, rompendo as relações com quem o desafiava. Nunca foi de briga. Não há notícia de alguma briga de fato de seu bisavô. Mas não admitia desaforo. Raramente perdoava um desafeto. Também não era vingativo. Se afastava e ficava remoendo por um tempo o
incidente. Depois tocava a vida. E foi por causa de um incidente desta natureza que um dia seu bisavô resolveu vender tudo o que construíra em Addon Batista e comprou outra
propriedade bem menor em Ibicaré. Cidade onde seus Avós viveram e eu nasci. Mas isso fica para depois.
A história nunca foi muito bem esclarecida. Mas o que se sabe é que seu vizinho de propriedade, um dos filhos do Angelo Martendal, possuía um bom moinho d´água, o melhor da região e moia mandioca e farinha de milho. Já andavam as turras por causa da criação que andara pulando a cerca e comendo quase meio alqueire de milho de seu bisavô. Mas o fato é que o vizinho pôs o seu moinho a venda. Seu bisavô de pronto manifestou interesse e fecharam o preço, com um curto prazo para que ele pudesse levantar o dinheiro da entrada. Ocorre que no culto de domingo, meu avô ficou sabendo que o vizinho fechara o negócio com outro amigo, desfazendo a palavra dada ao seu
bisavô. Foi uma confusão grande. Palavões, impropérios, ameaças, maldições. Não passou disso. Mas sei  que seu bisavô ficou muito magoado e desgostoso e resolveu vender tudo e se mudar. Não se sabe se fizeram mal negócio. Mas venderam toda a criação de gado, porco e galinha. Nunca se queixaram  do negócio. Fala-se até hoje de uma junta de boi carreiro, muito bons de arado que nunca mais acharam outro igual.
Deixaram com a  propriedade. Acho que se arrependeu por não  ter levado junto com a mudança para Ibicaré. Levaram os móveis, já todos de madeira boa, a cristaleira com todos as louças do casamento.
Foram acompanhando o caminhão do Gildo Foppa, com a Ford Rural mais bem equipada da região, que seu bisavô havia comprado para  que seu avô, já maior de idade, pudesse levar os pais para Abdon fazer as compras e participar mais vezes da missa dominical. Sempre davam carona para os menos afortunados que não possuíam nem ao menos um fusca.

A propriedade de Ibicaré era menor, mas as terras e o clima pareciam ser mais promissores. Era uma faixa de 20 alqueires que ia do cimo da serra com mata nativa, uma parte plana ao centro de terra cultivável e as encostas com pasto  até as margens do rio do Peixe. O negócio englobava uma casa de madeira antiga mas muito bem conservada, de arquitetura estilo vêneto, com porão e sótão. Havia unas 5 nascentes na propriedade, dois córregos, um pomar e um parreiral onde já se produziam boas colheiras de uvas niágara e um vinho adocicado que era consumido pela família. Com parte do que sobrou do negócio, compraram de seu outro bisavô, Antônio Bezem cerca de 30 Pinheiros do Paraná adultos, o que foi suficiente para fazer uma casa nova para seu Avô, que acabara de casar com sua avó, filha de Antonio Bezen.


quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

            INJUSTIÇA: MESMO SERVIÇO, SALÁRIO DIFERENTE.

Outro dia assisti um experimento científico do primatologista holandês, Frans de Waal publicado em 2003 (http://youtu.be/t6OsVUlp7Y0) onde mostra que os primatas , os lobos (e/ou cachorros) e outros animais ditos "sociais", que vivem em forma de cooperação entre si, apresentam uma aversão à injustiça.
Nesta experiência dois macacos são colocados em uma jaula e toda vez que devolvem uma pedrinha para a tratadora ganham uma rodela de pepino. Depois de um tempo, um deles passa a receber uma uva no lugar da rodela de pepino. O macaco que recebe o pepino, ao ver o outro recebendo uma uva (um pagamento melhor) por exercer a mesma tarefa, se revolta, recusa o pepino e deixa de obedecer. 
Não tenho uma opinião formada, mas este experimento sugere que a aversão à injustiça é algo bem mais profundo do que imaginamos, na verdade, uma característica biológica e hereditária que vai além do aprendizado ou da cultura do mundo civilizado.  A aversão às injustiças não é algo inerente o homo sapiens.
Depois, ouvindo meus colegas no local de trabalho, concluí que algo parecido vem ocorrendo no interior do Poder Judiciário, em nossa categoria. Não acho que seja possível fazer uma comparação científica, com o experimento citado, mas ha alguns anos observa-se um crescente movimento nas bases da categoria, em todo país, um movimento de revolta constante contra uma situação de injustiça. Há colegas que realizam as mesmas tarefas, recebem salários diferenciados. 
Há muita coisa que pode ser argumentada em justificativa para estas diferenças salariais: escolaridade exigida no concurso, tempo de serviço, mudança na carreira, etc. Há muitas coisas que devem ser levadas em conta nesta discussão. Mas o problema pode ser bem mais profundo que isso e necessita de mais atenção por parte do movimento sindical.
Quando entrei para a categoria em 1994, o Serviço Público Federal passava por um período de grandes transformações, em especial entre nós, servidores do Judiciário Federal. Estávamos, pela primeira vez na história, nos organizando em entidades sindicais, e houve um período fértil de elaboração de nossas pautas. Naquele tempo havia uma efervescente discussão sobre nossa carreira.
Ao passo que construíamos nossa pauta calçados nos avanços da Constituição de 1988, que dava margem para a ampliação dos direitos sociais e  uma maior eficiência no atendimento à população,  a linha do Governo era  diametralmente oposta, buscando a implementação do projeto liberal de estado mínimo. O projeto liberal foi introduzido pelo governo Collor/Itamar, mas no Serviço Público foi posto em funcionamento pra valer com o ministro Bresser Pereira no governo FHC. Foram anos de muita luta, uma luta muito dura, mas muito unificada.  E foi sobretudo por causa desta unidade que nossa categoria saiu vitoriosa em quase todas as batalhas, pelo menos até 2003.
Vencemos muitas batalhas por aumento salarial, mas perdemos várias outras que foram minando conquistas históricas da categoria. Veio então a lambada mais forte: no primeiros meses do governo Lula, numa madrugada de abril, o Congresso aprovava a Reforma da Previdência. Foi para nós do serviço público federal um golpe tão duro quando àquele que FHC infringiu sobre os petroleiros em 1995. Daqueles que demoram décadas pra se levantar de novo. O fato é que desde então os ventos mudaram e penderam para o lado do projeto liberal.
Uma das lógicas do liberalismo é quebrar a unidade dos trabalhadores. É jogar um contra o outro. O primeiro passo foi jogar o trabalhador da iniciativa privada contra os trabalhadores públicos, campanha orquestrada inicialmente por Collor, o “caçador de Marajás”, lembram? Logo em seguida buscou-se a quebra da unidade entre os servidores federais, levada a cabo por FHC, mas concluída pelo governo Lula, ao instituir as negociações por categoria, nos empurrando para o isolamento onde cada categoria negociava o “seu aumento”. Caímos nesta armadilha e agimos nesta toada durante toda a segunda metade da década dos anos 2000. Nós do judiciário nos saímos um pouco melhor até 2006, com um dos maiores índices de aumento do funcionalismo. Graças a nossa luta unificada de todos os ramos da Justiça e com força nacional.
Na fase atual, nos atacam buscando quebrar nossa unidade interna. Uma outra característica do liberalismo econômico é manutenção de uma política de desigualdade salarial. Thomas Piketty tá ganhando dinheiro escrevendo sobre isso, provando que o mundo liberal é o mais injusto da historia. E o movimento sindical ficou à margem deste debate e não interviu nesse processo, que se consolida e ganha mentes e corações de boa parte de nossa categoria.
O movimento pró – subsídio, e o atual movimento dos Técnicos e Analistas são movimentos que quebram a nossa unidade. Mas não haverá razoabilidade nas suas demandas? Não será porque há anos estamos lutando por tabelas que simplesmente reforçam as distorções salariais, quebrando cada vez mais a nossa unidade e fortalecendo exatamente o projeto que deveríamos estar combatendo?
O Serviço Publico Federal talvez esteja passando por um período de transformações, como foi na década de 90, me parece que o movimento sindical não está sendo capaz de acompanhar, formular e interferir corretamente no processo. Estamos gastando todas nossas fichas e energias numa luta por uma tabela, que no fundo desintegra a unidade de classe, nossa única ferramenta capaz de nos dar qualquer vitória substancial.  
Precisamos de uma carreira bem definida com um projeto mais claro de nosso papel dentro do  Serviço Público. Precisamos parar e elaborar a nossa proposta onde todos se sintam contemplados e a sensação de injustiça diminua em nossos locais de trabalho.
Claudio Klein     

terça-feira, 20 de janeiro de 2015


VENTOS DE CACHORRO LOUCO NO TRF 3

Lord, meu vira lata com cara de labrador, parou meio assustado no gramado do parque, no meio de uma nuvem de poeira e folhas secas e papeis carregados por um vento forte, incomum. "È o vento norte, vento de cachorro louco", lembrei da frase do meu saudoso avô Ernesto, enquanto um arrepio percorreu minha espinha. Apertei o passo pra casa, arrastando meu dois vira latas com rédeas curtas e sem muita explicação. Obedeceram adestradamente.
Meu avô era um camponês analfabeto. Mas tinha uma sabedoria de homem da terra, muito peculiar. Era capaz de dizer a fase da lua a qualquer momento que lhe fosse perguntado. Sabia quando ia chover e os tempos exatos de plantar, capinar e colher qualquer tipo de plantação. Soube por ele que a poda deve ser feita com a minguante de agosto e que nesse mês começa a soprar o vento norte, anunciando o fim do rigor do inverno. Agosto é o mês de cachorro louco, lobisomem e uma série de sortilégios e perigos para as crianças desprevenidas. Era com se esses ventos fortes liberassem coisas ruins e maldades enterradas inertes, a espera de uma chance de agir, me ensinou Ernesto, meu avô.
No caminho de casa, entre as lufadas do vento do norte que enchiam  meus olhos de poeira, uma ideia martela meus pensamentos. Ventos estranhos sopram no TRF3, nesse "entardecer" da gestão Newton de Lucca. Procedimentos, que como o vento de cachorro louco, remexem as coisas e fazem aparecer doenças há algum tempo adormecidas. Ventos que estão deixando os que aqui trabalham doentes. Ventos que nos deixam loucos.
A área meio, vem sofrendo radicais modificações, com trocas de chefias, projetos e procedimentos de toda a ordem. Eu sempre desconfio de alguém que é presenteado com um cargo e se esmera por querer "mudar" procedimentos que estavam indo bem há décadas, as vezes, simplesmente para buscar deixar uma marca pessoal. E geralmente da onde menos se espera, daí que não vem nada mesmo, já diz o ditado. Mas como já ocorreu no passado, geralmente quando se implantam essas ideias, com chefes inseguros e prepotentes à frente, mais do que melhorias, acompanham uma lufada de autoritarismos e desmandos sobre os subordinados.
São inúmeros exemplos que poderíamos elencar. Dois, ao meu ver são simbólicos. 
O ritmo de trabalho aumentou drasticamente nesse último período. Qualidade hoje é sinônimo de quantidade. Este mês houve um aumento surpreendente na distribuição de processos para a segunda instancia. Capas rosas dos processos se amontoam pelas mesas e corredores, com pedidos de aposentadoria. Sem concurso, sem novos servidores, não tardou para que os tambores aumentassem o ritmo de trabalho nos gabinetes e turmas. Houve casos em que a meta passou de 3 ou 4 processos diários por servidor, para uma meta de 10 por dia. E é assim. Se vira. Tem que bater a distribuição semanal. É a busca do sistema "Just in time", sem estrutura, mas com um chicote na mão.
O que fica claro nesses processos é que as ordens descem do "olimpo" sem muito planejamento. O primeiro resultado destes rompantes é que reaparecem, das cinzas, como as doenças vindas com os ventos do norte, chefes, supervisores e colegas perversos. O terreno para o assédio moral está preparado. 
Quando o signo da administração se volta para uma gestão repressora, aos poucos as coisas vão aparecendo. Tudo caminha para piorar a vida dos trabalhadores. 
Há anos havia um símbolo de humilhação neste tribunal, o tal do "banquinho do RH". Os servidores que saíam de um setor, permaneciam sentados em um banco no corredor do RH, as vezes por meses a fio. Há algumas gestões conseguimos mudar para uma sala reservada, com janela, ramal e terminal de computador. Mesmo assim, muitos adoeceram, foram aposentados e até demitidos enquanto esperavam por uma vaga e lá esperavam.
Uma nova inovação foi arquitetada por algum chefes que abrilhantam esta gestão. Os colegas que aguardam vaga nos setores, deverão agora, para melhor controle, ficar em uma sala interna, com vidros. Digamos, uma espécie e "aquário", para que possam ser monitorados pelos responsáveis dos Gestores de Pessoas. É um símbolo novo que se instala. Um vento do norte, um novo sinal que é passado para as chefias do Tribunal, um lamentável sinal de que o trabalhador comum está, de cara errado, tem que ser vigiado e humilhado para que se adeque ao ritmo novo da gestão.
Não é coisa do vento do cachorro louco? Somente esse fenômeno, com suas fortes rajadas poderia desenterrar tão “brilhante” ideia. Estava certo Ernesto, quando dizia pra tomar cuidado com os ventos do norte.
São os ventos de cachorro louco que cortam as "arcadas" deste Tribunal, endurecendo barbas indiferentes e com outras ocupações e preocupações.

Bem vinda a campanha que o Sintrajud está iniciando contra o
Assédio Moral.